sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Os ombros suportam o mundo

Pouco a pouco Ani Dabar vai registrando os poemas preferidos de toda a vida. Faltava Drummond. Não falta mais. Os preferidos que saíram de sua mão são vários. Com o tempo, talvez outros venham se somar a este, no blog.


Os ombros suportam o mundo
Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
    Tempo de absoluta depuração.
    Tempo em que não se diz mais: meu amor.
    Porque o amor resultou inútil.
    E os olhos não choram.
    E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
    E o coração está seco.

    Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
    Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
    mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
    És todo certeza, já não sabes sofrer.
    E nada esperas de teus amigos.

    Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
    Teu ombros suportam o mundo
    e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
    As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
    provam apenas que a vida prossegue
    e nem todos se libertaram ainda.
    Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
    prefeririam (os delicados) morrer.
    Chegou um tempo em que não adianta morrer.
    Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
    A vida apenas, sem mistificação.



quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Ninguém nos conta a História... (mais de Brecht)

Um texto revelador por vezes assombra justamente "por poder ter sido/estado oculto quando terá sido o óbvio" (citação de Caetano Veloso). As pirâmides foram feitas mais pelos que arrastaram os blocos de pedras do que por qualquer faraó. A Babilônia, pelos que a ergueram e reergueram, pelos que alimentaram os que a ergueram, pelos que cultivaram e distribuíram esses alimentos. O que a História tem a nos dizer sobre eles, sobre os trabalhadores que mantêm e constroem as sociedades e sua infraestrutura, sobre esses pilares que realmente sustentaram e sustentam o mundo? O que a História nos conta sobre seus nomes, onde moraram e moram, como se sentiram diante das grandes tragédias nacionais, catástrofes naturais, decisões de seus líderes. Não se contam essas histórias. Mas talvez seja a História que mais interessa e merece sair da invisibilidade e do silêncio. Talvez sejam os trabalhadores anônimos nossas nobres personalidades e nossos heróis históricos. Salve a arte reveladora do óbvio de Bertolt Brecht! Salve as mãos da nobreza, masculinas e femininas, de todas as cores, em seu trabalho operário, artesanal, camponês ou doméstico do dia-a-dia. Fiquem expressos aqui minha admiração, respeito, gratidão.


Operários - Tarsila do Amaral

QUEM FAZ A HISTÓRIA

Quem construiu a Tebas das sete portas?
Nos livros constam os nomes dos reis.
Os reis arrastaram os blocos de pedra?
E a Babilônia tantas vezes destruída
Quem ergueu outras tantas?
Em que casas da Lima radiante de ouro
Moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros
Na noite em que ficou pronta a Muralha da China?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os levantou?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio só tinha palácios
Para seus habitantes?
Mesmo na legendária Atlântida,
Na noite em que o mar a engoliu,
Os que se afogavam gritaram por seus escravos.
O jovem Alexandre consquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses,
Não tinha pelo menos um cozinheiro consigo?
Felipe de Espanha chorou quando sua armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Fredrico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Uma vitória a cada página.

Quem cozinhava os banquetes da vitória?
Um grande homem a cada dez anos.

Quem pagava as despesas?
Tantos relatos.

Tantas perguntas.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Aqui a minha fonte para o poema.


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

El Golem - Jorge Luis Borges



El Golem
Jorge Luis Borges

Si (como el griego afirma en el Cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo en la palabra Nilo.

Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible Nombre, que la esencia
Cifre de Dios y que la Omnipotencia
Guarde en letra y sílabas cabales.

Adán y las estrellas lo supieron
En el Jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.

Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de Dios buscaba el Nombre
En las vigilias de la judería.

No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De Judá León, que era rabino en Praga.

Sediento de saber lo que Dios sabe,
Judá León se dio a permutaciones
de letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el Nombre que es la Clave,

La Puerta, el Eco, el Huésped y el Palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos
labró, para enseñarle los arcanos
De las Letras, del Tiempo y del Espacio

El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.

Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
de Antes, Después, Ayer, Mientras, Ahora,
Derecha, Izquierda, Yo, Tú, Aquellos, Otros.

(El cabalista que ofició de numen
A la vasta creatura apodó Golem;
Estas verdades se las refiere Sholem
En un docto lugar de su volumen.)

El rabí le explicaba el universo
"Esto es mi pie; esto el tuyo; esto la soga."
Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.

Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del Sacro Nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre.

Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
penumbra de las piezas del encierro.

Algo anormal y tosco hubo en el Golem,
Ya que a su paso el gato del rabino
Se escondía. (Ese gato no está en Scholem
Pero, a través del tiempo, lo adivino.)

Elevando a su Dios manos filiales,
Las devociones de su Dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.

El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ¿Cómo (se dijo)
Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?


¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿Por qué la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?


En la hora de angustia y de luz vaga,
En su Golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en Praga?

1958 (Del libro: El otro, el mismo)



domingo, 21 de agosto de 2011

Efeito bonsai e a aniquilação social da mulher

O desejo de dominação é uma besta voraz. Nunca há corpos quentes suficientes para saciar sua fome monstruosa. Uma vez viva, essa besta cresce e cresce, se alimentando de toda vida ao seu redor, percorrendo a terra para encontrar novas fontes de nutrição. Essa besta vive em cada homem que refestela-se na servidão feminina. ~Andrea Dworkin~

Em outubro de 2006, por um desses felizes acasos, chegou às minhas mãos um texto sobre violência de gênero publicado no jornal espanhol El País. Era iluminadora a analogia usada pelo psiquiatra Miguel Llorente Acosta para falar de um processo gradual de anulação psicológica que antecede as situações de violência físcia, comparando-o com a técnica do bonsai. 

Sua analogia era iluminadora porque, embora o artigo se referisse à violência de gênero na forma de maltrato físico, me esclareceu algo importante também sobre o processo pelo qual a criação das mulheres nas nossas sociedades patriarcais machistas as aniquila a partir de um sistemático ataque psicológico subliminar. As meninas crescem e passam a vida bombardeadas por expressões explícitas e implícitas de que são menos capazes, mais burras, mais fracas, fúteis, incapazes de autonomia ou de se ocupar das coisas mais sérias e graves da vida, que requerem especial formação e competência, isso sem falar de quase todas as religiões que inculcam a inferiorização feminina como "vontade de Deus", a partir de ideias como a de que a mulher é a principal responsável pelos males da humanidade, pela perda do paraíso, e, dada a gravidade de seu pecado original, deve estar permanentemente sofrendo e em posição submissa.

Então não é assim que, ao longo dos séculos, as mulheres vêm sendo criadas? Numa produção em série de bonsais psicológicos: meticulosamente podadas para nunca chegarem ao pleno desenvolvimento de seu potencial com indivíduos? O mesmo valeu, durante muito tempo, é certo, para os negros, vítimas da atrocidade da escravidão e da segregação étnica. Mas, como diz Andrea Dworkin:

A natureza da opressão das mulheres é única: as mulheres são oprimidas enquanto mulheres, sem considerações de classe ou raça; algumas mulheres têm acesso à riqueza significativa, mas essa riqueza não significa poder; mulheres podem ser encontradas em todo lugar, mas não possuem ou controlam nenhum território apreciável; mulheres vivem com aqueles que as oprimem, dormem com eles, têm seus filhos — nós estamos entrelaçadas, desesperadamente parece, nas entranhas do mecanismo e do modo de vida que é danoso para nós.

A opressão do homem pelo homem iniciou-se com a opressão da mulher pelo homem. ~Karl Marx~


Vão trechos do texto mencionado do El País (2006), e também de uma reportagem mais recente, que volta a mencionar a analogia proposta por Miguel Lorente:

Jesús y Ángel llevan años tratando a hombres condenados por violencia de género. De sus fechorías saben lo que ellos les cuentan y lo que el juez reflejó en la sentencia que los envió a prisión. En cambio, Juan Ignacio Paz, psicólogo del Instituto Andaluz de las Mujeres, vive el drama desde el lado de las víctimas. Los tres coinciden en que no existe un "perfil" del maltratador, pero sí unas pautas de conducta que se repiten en unos y en otros, a veces de forma asombrosa. "Son personas con una ideología de dominio, inseguras, machistas, incapaces de controlar la ira..., que van anulando a su víctima mediante un proceso de ensayo y error. Las estrategias que utilizan unos y otros se parecen tanto que a veces pensamos que debe haber una academia en algún sitio. No se puede hacer distingos sobre la procedencia social o económica del maltratador. Si acaso, puede haber diferencias en las formas. No es lo mismo para ellos que aparezca con un ojo morado un ama de casa de un barrio de las afueras que la mujer del fiscal o del catedrático". Juan Ignacio Paz dice que al principio todos repiten como una letanía la siguiente fórmula: "No vales para esposa, no vales para madre, no vales para amante. Los problemas son culpa tuya. Yo soy el listo y tú la torpe. Yo el que trabaja y tú la mantenida". Cuenta el caso de una mujer que era cocinera profesional. Tanto la había machacado su marido diciéndole que todo lo que guisaba era una porquería que al final era incapaz de guisar y perdió el trabajo. "Cada vez que se ponía delante de la cocina, se le agarrotaban los músculos".

Juan Ignacio Paz dice que el maltratador aplica sobre su víctima un proceso sistemático de destrucción de la personalidad. "Hay un paralelismo muy acusado con el lavado de cerebro de las sectas. Y eso tiene un problema añadido, no sólo te destroza como persona, sino que además te engancha. Provoca una dependencia emocional brutal. Quien más me gusta explicando esa dependencia es el psiquiatra Miguel Lorente. Habla del efecto bonsái. Un bonsái no es un árbol que no crezca, es un árbol al que se le impide crecer. Al que se le van cortando ramas y raíces para que no crezca. Pero a la vez se le echa la agüita justa, se le saca a que le dé el aire... Es decir, la misma persona que va destrozando el bonsái es la misma persona que le permite seguir vivo. Aquí estamos hablando de lo mismo. Como el maltrato no es continuo sino que se ajusta al ciclo de acumulación de tensión, descarga y luna de miel, la misma persona que la va anulando, que le va quitando todo, se convierte en su luz en la oscuridad. La única fuente de afecto, de ternura, de cosas positivas. Él se ha ido encargando de ir quitándole otras. Sólo le queda él. ¿Qué ocurre? Si él es la única luz en la oscuridad, ella acaba como una polilla en una bombilla. Se le ha llamado el afecto paradójico, porque cuanto más la destroza, más apego siente ella por él. Si a mí me regalan un bonsái y lo planto en el jardín, el bonsái se muere: no tiene raíces para profundizar buscando agua, no tiene hojas para hacer la fotosíntesis, no es capaz de vivir. Eso es lo que siente una mujer maltratada, que es incapaz de vivir sin su verdugo. 'Es que me muero sin él', me dicen. Pero no es amor, es dependencia. Y es una dependencia más fuerte que la heroína".

As mais exploradas são as mães do nosso povo. Elas estão de mãos e pés amarrados pela dependência econômica. São forçadas a vender-se no mercado do casamento, como suas irmãs prostitutas no mercado público. ~Friedrich Engels~

Hace 11 años, a Echeburúa le llamó poderosamente la atención un dato. "Había tratado a 300 ó 400 mujeres víctimas de malos tratos cuando comprobé que entre el 40% y el 60% de ellas seguía viviendo con el agresor. Me causó una gran perplejidad que aquellas mujeres -la mayoría por encima de los 40 años y con una experiencia de maltrato de más de 10 años- hubieran sido capaces de romper el silencio, de destapar la situación de opresión y tortura en la que vivían, pero no de romper con sus parejas. Nos dimos cuenta entonces que el tratamiento era muy limitado si las tratábamos sólo a ellas, porque hay una cosa clara: el maltrato, una vez que se establece, es una conducta crónica. Por muchas muestras de arrepentimiento que haya, el maltrato se va a repetir. Entre otras cosas porque el hombre obtiene ganancias con él. Así que decidimos tratar también a los maltratadores, sobre todo a aquellos que seguían viviendo con sus parejas.
In El País, por Pablo Ordaz, 15/10/2006. Texto completo aqui.


O amor romântico, tanto na pornografia quanto na vida real, é a mítica celebração da negação feminina. Para uma mulher, o amor é definido como sua boa vontade para se submeter a sua própria aniquilação... A prova de amor é que ela está disposta a ser destruída por aquele a quem ama, pelo bem dele. Para as mulheres, o amor é sempre auto-sacrifício, sacrifício de sua identidade, desejo e integridade de seu corpo; para que satisfaça e redima a masculinidade de seu amado. ~Andrea Dworkin~

TRECHOS DE ENTREVISTA A MIGUEL LORENTE ACOSTA

Un bonsái no es un árbol que no crezca, sino un árbol al que se le impide crecer, al que se le van cortando ramas y raíces para que no se desarrolle. Es lo que hace el maltratador. Cuando su pareja intenta crecer como persona, él se encarga de podar eso, pero al mismo tiempo da las justas dosis de cariño para que no muera. La propia mujer se nota impotente, pero como recibe lo que necesita para seguir viviendo, crea una relación de dependencia. Depende de la misma persona que la anula. Y llega a creer que sin él no va a poder vivir. Para poder desarrollarse, para poder crecer, necesita un proceso de adaptación. Como el bonsái; si lo sacamos de su mínima maceta y lo plantamos en el jardín, se muere, porque ni siquiera tiene raíces para profundizar buscando agua en el suelo. (...)

A menudo digo que no me gusta hablar de machismo, porque puede dar la sensación de que es el problema de unos pocos que actúan en exceso, y no es eso; prefiero hablar de un problema de patriarcado, de un patrón cultural y social basado en la desigualdad. (...)


A mulher não nasce: ela é feita. No fazer, sua humanidade é destruída. Ela se torna símbolo disto, símbolo daquilo: mãe da terra, puta do universo; mas ela nunca se torna ela mesma porque é proibido para ela fazê-lo. ~Andrea Dworkin~

A la mujer le sigue dando valor ser buena madre, ser buena esposa, ser buena ama de casa, aunque luego también trabaje. Si una mujer es una buena profesional, pero descuida a sus hijos, dirán: sí, sí, es muy buena médica, muy buena política, pero, fíjate, sus hijos han estado en colegios internos; ha fallado en lo esencial. Al padre no se le pide eso. Si la mujer asume ese rol y asume que hay una especie de controlador doméstico, para decir sí o no, para corregir, si está sometida, podríamos pensar que ya no hay necesidad de recurrir a la violencia. Pues incluso así puede aparecer la violencia. Porque cuanto más injusto es el mandar, más sensación de poder te da. Mandar lo que es correcto no da sensación de poder, pero mandar una cosa injusta da mucha. (...)


O fato que todas nós somos treinadas da infância em diante para sermos mães significa que nós todas somos treinadas para devotar nossas vidas aos homens, quer eles sejam nossos filhos ou não; que todas nós somos treinadas a forçar outras mulheres a exemplificar a falta de qualidades que caracteriza a construção cultural da feminilidade. ~Andrea Dworkin~

La violencia de género ha existido gracias a su invisibilidad. La información es básica para romper con esas pautas y esos siglos de comportamiento. Pero estamos detectando hace años que hay acumulación de casos a partir de uno. Por un efecto de repetición. En violencia de género se ha diagnosticado que la información que se está dando no es del todo la más adecuada, porque se entra mucho en los detalles, lo anecdótico, lo morboso, en aquello que tiende a justificar. (...)
El País, entrevista a Miguel Lorente Acosta por Rafael Ruiz, 01/08/2010. Entrevista completa aqui.

Também vale a pena dar uma olhada no post Violencia de género y los cuidados de un bonsái, por Vihernes.
Por fim, duas belas leituras relacionadas: a peça Casa de Bonecas (ou Uma casa de boneca) de Henrik Ibsen e o texto ¿Corrupción de menores?, de María Elena Walsh.


Sempre vi na dominação masculina e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência dessa submissão paradoxal, resultante daquilo que chamo de violência simbólica, violência suave, insensível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instãncia, do sentimento. ~Pierre Bourdieu~

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Reencontros - José Pacheco

Ponte natural
Ponte natural formada por raízes aéreas de árvores, na Índia.

Insisto em contar ao Marcos histórias que o desgaste da memória ainda não apagou. Falo-lhe dos primeiros tempos de uma viagem em busca de uma Escola mais fraterna. Descrevo episódios luminosos, poupando o Marcos a relatos de ignomínias, pois o meu neto há de chegar a descobrir por si próprio e a seu tempo, que os maravilhosos seres humanos também são capazes da perfídia e da maldade. Explico-lhe como, perante as contrariedades e insucessos, nos agarrávamos aos livros como a bóias salvadoras. Nos momentos mais críticos, quando a vontade de desistir era imperativa, evitávamos o naufrágio, relendo-os, para percebermos onde nos teríamos enganado na interpretação dos mapas que nos levariam à praia prometida.

Só não sabíamos que toda a viagem tem regresso. Que o barco que parte não é o mesmo que regressa, mas regressa. Que a vida é toda ela reencontro. Que somos um pouco de cada ser que encontramos na viagem. Que há seres viajando ao nosso lado, noutras viagens. E que até os mortos queridos vão a par, quando ousamos contrariar ventos predominantes. Se alguém não acredita, que medite no que vou contar.

Foi numa São Paulo frenética, num fim de tarde, enquanto viajava de carro entre dois aeroportos. O motorista era conversador e de fala fluente. E a conversa (ou melhor, o monólogo) arrancou ao mesmo tempo que a viatura.

Pensava eu ter de aguentar a costumeira conversa sobre o tempo que fazia… Mas enganei-me, pois o motorista falou-me da sua infância no Nordeste. Contou-me histórias de fome e abandono. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado, bem precocemente, da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro. Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta história igual a tantas outras histórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros… Mas o melhor estava para vir. A certa altura do monólogo, parámos nuns semáforos. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala:

- Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?

Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.

Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou.

Assenti com um aceno a que não deu atenção. E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:

- O senhor sabe o que faz a minha mulher?... É professora! Quando nos casámos, ela já tinha estudos, mas quis tirar um curso. Só tinha um problema: não gostava de ler. E eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso.

Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato:

- A minha mulher trazia livros para eu ler. À noite, eu lia. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fazia as provas e ficava aprovada. E, assim, fez o curso de professora.

Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Dewey, Piaget... E rematou a conversa, por estarmos a chegar ao nosso destino:

- Para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe vou dizer, porque são assuntos da Pedagogia, da Educação… compreende?

Não retorqui, e ele concluiu, dizendo:

- Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem a certas crianças. E até me deu vontade de chorar.

Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me comoveu a sua história. Talvez nunca possa manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta ameaçava desatar-se…

No decurso das nossas vidas, há dias assim, prodigiosos. Acabo de receber uma chamada telefónica. Seria idêntica a muitas outras, um convite para fazer uma palestra sobre a Ponte. Mas a minha memória acendeu-se, ao escutar o nome da pessoa que me falava do outro lado da linha. Ousei perguntar se seria filha ou familiar da professora Isabel Pires. A minha interlocutora respondeu que era ela mesma, a Isabel em pessoa. Na década de 70, sem que a Isabel o soubesse, foi uma sua obra que iluminou os caminhos da aprendizagem da matemática de muitas gerações de alunos da Ponte.

Encontrei a Konstance Kamii, professora do Alabama, num aeroporto estrangeiro, quando regressava de um congresso, onde (coincidência?) fui falar da Ponte. E agradeci-lhe um contributo que ela ignorava ter dado. Foram os seus estudos sobre autonomia, a partir dos contributos de Piaget, que sustentaram o quanto basta de teoria, nos primeiros tempos do nosso projecto.

Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao seu primeiro porto e se apronta para nova viagem, começo a coabitar com um Mistério a que não dou nome. Há algo cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Os projectos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos paralelos. Súbitos reencontros nos mostram que esses projectos também se alimentam de ocultas solidariedades. Será verdade que andam anjos pela Terra?

José Pacheco; Jornal a Página da Educação , ano 14, nº 151, Dezembro 2005, p. 5.

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Reproduzo acima um artigo já publicado na Internet, na Página da Educação (Portugal). O motivo é a formatação incômoda para a leitura que o artigo tem no site original, além de não aparecer lá o nome do autor. Mesmo vendo que o artigo está também na Wikiquote, com formatação bem melhorada e nome de autor devidamente atribuído e claro, o formato aqui está um pouco mais caprichado e amigável. O texto merece.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Escola da Ponte

José Pacheco


José Francisco Pacheco é o educador que deu impulso inicial ao projeto da Escola da Ponte, uma revolucionária escola de Portugal que nosso educador brasileiro Rubem Alves descreve assim:


... um único espaço, partilhado por todos, sem separação por turmas, sem campainhas anunciando o fim de uma disciplina e o início da outra. A lição social: todos partilhamos de um mesmo mundo. Pequenos e grandes são companheiros numa mesma aventura. Todos se ajudam. Não há competição. Há cooperação. Ao ritmo da vida: os saberes da vida não seguem programas. É preciso ouvir os "miúdos", para saber o que eles sentem e pensam. É preciso ouvir os "graúdos", para saber o que eles sentem e pensam. São as crianças que estabelecem as regras de convivência: a necessidade do silêncio, do trabalho não perturbado, de se ouvir música enquanto trabalham. São as crianças que estabelecem os mecanismos para lidar com aqueles que se recusam a obedecer às regras. Pois o espaço da escola tem de ser como o espaço do jogo: o jogo, para ser divertido e fazer sentido, tem de ter regras. Já imaginaram um jogo de vôlei em que cada jogador pode fazer o que quiser? A vida social depende de que cada um abra mão da sua vontade, naquilo em que ela se choca com a vontade coletiva. E assim vão as crianças aprendendo as regras da convivência democrática, sem que elas constem de um programa.
Eu precisaria ver para crer e consegui ver um pouco pelo YouTube. No vídeo abaixo, José Pacheco faz pontes entre a Escola da Ponte e a educação no Brasil.



Uma escola que tenha mais de 100 alunos deixa de ser uma escola, passa a ser um depósito de alunos onde ninguém se conhece.

Nós precisamos ter vínculos afetivos, precisamos criar laços. Porque a aprendizagem não está centrada no aluno, não está centrada no professor, não está centrada no conteúdo. A aprendizagem - isto não está nos livros, mas nós decobrimos - está centrada na relação. Aliás, muito freiriano: nós não ensinamos nada a ninguém; aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo... Então, se está centrada na relação, tem de haver uma relação intensa entre as pessoas.

Somos a primeira escola no mundo que teve um contrato de autonomia (com o Ministério de Educação). Nós não obedecemos as leis do Estado, obedecemos a lei que estabelece nosso projeto político e pedagógico, daquela comunidade. E temos, como primeira condição do contrato, que o Ministério de Educação crie uma comissão de acompanhamento e avaliação para medir os resultados que nós produzimos. Temos responsabilidade social: venha alguém de fora para ver os resultados. E se os resultados forem negativos, acabamos com o contrato. Somos nós que escolhemos os professores, somos nós que nos gerimos financeiramente, somos nós que escolhemos o nosso modelo curricular, somos nós que fazemos tudo. Cumprimos toda a grade curricular dos nove anos, integralmente... e temos os melhores alunos.


Outros bons vídeos relacionados clicando nos links abaixo:

- Trecho de documentário sobre a Escola da Ponte.

- Parte 1 e Parte 2 de programa que explica o funcionamento da Ponte.

- Um caso de adolescente com antecedentes criminais e violentos recebido na Escola da Ponte: "Ele logo compreendeu que na nossa escola NINGUÉM ESTÁ SOZINHO".

Tem mais lá pelo YouTube. Informações, comentários, opiniões: bem-vindos.